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OS FACTOS E AS VERSÕES

Rui Costa Moreno

Cidade de Lisboa, Portugal

As acusações da Sábado contra Nuno Vasconcellos deveriam conter a advertência das obras de ficção: “qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência”.

A revista Sábado, em suas edições nº 899, de 22 a 28 de julho, e nº 900, de 29 de julho a 4 de agosto, publicou duas reportagens que podem ser consideradas lições reversas de jornalismo. Tudo que não é recomendado na elaboração de uma matéria jornalística está nos textos que a revista produziu para tratar da vida e dos negócios do executivo Nuno Vasconcellos.

Na primeira das reportagens, que mereceu destaque na capa da revista, a Sábado seguiu os passos de Vasconcellos no Brasil, onde ele vive há mais de dez anos, e reacendeu acusações que vêm vendo feitas contra ele desde a falência de sua empresa, a Ongoing, em 2016. A segunda repercute as acusações que o ex-sócio da Ongoing e atual parceiro comercial da Sábado, Rafael Mora, vem fazendo em torno do Webspectator — um empreendimento na internet que foi objeto de uma disputa vencida por Vasconcellos na Justiça dos Estados Unidos em 2018.

Nas duas ocasiões, a Sábado se deu ao trabalho de ouvir ponto de vista de Vasconcellos ou de seus representantes. Nada do que disseram, porém, foi considerado. Para elaborar o primeiro trabalho, a revista ignorou as recomendações da boa prática jornalística e adotou uma postura que, analisada em seus detalhes, contém indícios graves de prática criminosa.

Escrito num idioma peculiar — que os brasileiros chamariam de “português de Portugal” e os portugueses, de “português do Brasil” — o trabalho só não pode ser considerado amador porque os jornalistas que o executaram foram pagos. Muito bem pagos, por sinal. Cada um dos dois profissionais brasileiros — Hudson Corrêa, que assina o texto, e Rogério Casemiro, responsável pelas fotografias — escalados pela Sábado para acompanhar os passos de Vasconcellos recebeu € 5.000 pelo trabalho.

A dupla disse ter rastreado, durante cerca de um mês, todos os passos do executivo. Conversou com adversários, leu documentos confidenciais que caíram em suas mãos e demonstraram uma postura que desmente uma série de afirmações publicadas pela própria reportagem.

A legenda de uma fotografia publicada em alto de página refere-se à residência para a qual a família de Vasconcellos se mudou no início deste ano. O texto diz textualmente que “a nova casa de Nuno Vasconcellos fica num condomínio de São Paulo com segurança privada 24 horas por dia”. Numa única frase, duas mentiras. A primeira é a de que a casa, localizada numa rua do bairro Jardim Europa, fica num condomínio.

A segunda é a de que a residência seria protegida por um sistema de segurança capaz de detectar a presença de intrusos e de, em poucos minutos, mobilizar contra ele as forças de segurança. Se fosse verdade, os dois “jornalistas” que seguiram os passos de Vasconcellos e de sua família não teriam encontrado tanta facilidade para se colocar à espreita e obter, sem autorização, fotografias que, segundo eles, atestam o estilo de vida luxuoso que ele leva no Brasil.

Vasconcellos trabalha, e deixou isso claro para os dois “repórteres”, na administração de uma série de empreendimentos que lhe garantem o “pró-labore” suficiente para sustentar a vida que leva. Não vive como pobre e jamais procurou fingir que vivesse. Ele mora, e não nega, num bairro valorizado de São Paulo — mas sua casa está longe de figurar entre as mais caras da cidade ou até mesmo do bairro.

Outro detalhe: se ele procurasse, como afirma a reportagem publicada pela Sábado, se esconder das autoridades, teria escolhido um lugar menos exposto para viver. Esse, por sinal, é outro ponto que merece observação. Se, conforme afirma a revista, as autoridades brasileiras e portuguesas não tiveram sucesso nas tentativas que teriam feito para ouvi- lo sobre algumas acusações, como foi que dois jornalistas pouco familiarizados com uma cidade complexa como São Paulo, como eles mesmos disseram, conseguiram chegar a ele na primeira tentativa que fizeram?

A dupla assegurou que obteve o endereço da residência em documentos públicos, registrados em Cartório na cidade de São Paulo. O mais provável, porém, é que, ao invés de seguir o caminho longo e burocrático que uma investigação como essa exigiria, seus passos tenham sido orientados por algum adversário interessado em construir uma versão incômoda para Vasconcellos.

A impressão que se tem é a de que o roteiro que guiou os passos já estava definido muito antes dos dois baterem à porta da casa da família. Sua presença, ali, serviu apenas para cumprir uma formalidade: independente do que apurassem, o texto sairia exatamente como saiu.

Existe um aspecto da reportagem que precisa ser observado. Nenhuma pessoa tão preocupada com a própria segurança, a ponto de se fazer cercar pelo aparato profissional descrito pela Sábado, receberia em sua casa de dois estranhos que, sem agendamento prévio de entrevista, tocassem a campainha e se anunciassem como jornalistas. Isso aconteceu no dia 15 de junho passado. Depois de se identificarem, os dois foram bem recebidos. Foram convidados a se sentar, aceitaram o café que lhes foi servido, conversaram amenidades e marcaram uma conversa mais prolongada para dois dias depois.

No dia 17, os jornalistas chegaram no horário marcado. Enquanto o repórter Corrêa conversava com Vasconcellos, o fotógrafo Casemiro se locomovia pela sala da casa, fotografando tudo o que queria. Em nenhum momento ele foi orientado a evitar qualquer imagem — o que só acontece numa casa em que os donos nada têm a esconder. A entrevista durou três horas e dez minutos e todas as perguntas que julgaram convenientes foram feitas. Nada ficou sem resposta. A despeito disso, nada do que foi dito por Vasconcellos durante todo esse tempo foi aproveitado pelos jornalistas — apenas algumas declarações superficiais completamente fora do contexto das perguntas que foram feitas.

Na peça acusatória que a Sábado chama de reportagem, os “jornalistas” listam uma série de acusações contra Vasconcellos e avança sobre detalhes de sua vida pessoal. Para construir a narrativa, mistura episódios e personagens na tentativa de descrever o executivo como um personagem arrogante e violento — o que é desmentido pela própria maneira com que foram recebidos e pelo tratamento que receberam.

Para elaborá-la, além de abusar do direito de distorcer a realidade, a Sábado e os jornalistas que contratou cometeram, em tese, pelo menos três crimes. O primeiro compreenderia fazer sem autorização imagens de Rafaela Strand, mulher de Vasconcellos, e do filho do casal, uma criança de dois anos. O Estatuto de Criança e do Adolescente, de 1990, veda não apenas o uso, mas também a tomada de imagens de crianças sem autorização dos pais.

O segundo compreenderia o crime de quebra de sigilo bancário e fiscal de Rafaela. O texto divulga dados da movimentação financeira e da declaração de renda de Rafaela — que não é investigada pela Justiça nem tem seu nome relacionado a qualquer acusação. Finalmente, o mais grave de todos foi a utilização de dados contidos num processo que corre em Segredo de Justiça contra o parque Hopi Hari para sustentar as acusações. Nesse caso, a postura da revista e dos jornalistas é ainda mais grave.

Existe, é verdade, um litígio em torno da administração do parque e do afastamento de antigos diretores pela acusação de terem desviado recursos do empreendimento. A revista, no entanto, ignora essa realidade e menciona apenas um processo recente — aberto há cerca de dois meses na Justiça do Trabalho da cidade de Jundiaí. Mais do que isso, o texto se limita a mencionar a peça de acusação e não faz qualquer menção à defesa feita pela direção do parque.

Pior ainda: a revista omite uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, no dia 21 de maio. O Tribunal suspendeu em medida liminar todos os efeitos das decisões anteriores do Juiz Trabalhista em relação a esse processo por considerar que a Justiça do Trabalho de primeira instância não tinha competência para tratar do caso da forma que tratou. Em tempo: assim como “teve acesso” ao documento com a acusação da primeira instância, a Sábado também recebeu uma cópia com a decisão STJ. Se não a utilizou foi porque não quis. Talvez porque a simples menção à existência da decisão do Tribunal Superior de Justiça jogaria por terra o eixo central da acusação feita a Nuno Vasconcellos.

Omitir decisões judiciais que desmentem mentiras de seu interesse tem sido uma prática recorrente da Sábado. Na edição seguinte, a revista voltou à carga para falar de uma denúncia crime aberta pelo ex-sócio de Nuno Vasconcellos, Rafael Mora, e que estava parada há mais de três anos no Ministério Público de Portugal.

Com base apenas na versão de Mora, a revista relata a disputa milionária em torno do Webspectator — um site de internet proprietário de um software que monetiza a audiência dos portais de internet. A acusação, que atinge Vasconcellos e alguns parentes próximos, diz que eles tentaram se valer da empresa para ocultar patrimônio. A verdade, porém, passa longe dessa versão.

Enquanto esteve na administração do site, André Parreira, amigo e sócio de Mora, cometeu uma série de irregularidades. No decorrer da ação que discutia a propriedade da Webspectator, ele e Mora renunciaram à diretoria da empresa. Só que não franquearam aos novos administradores o acesso aos arquivos e ainda continuaram utilizando o software como se não tivessem perdido o direito sobre ele.

Processados novamente, desta vez por violação de propriedade intelectual, Parreira teve negado pela Justiça Federal da Califórnia, onde a ação tramitou, o pedido de que fosse representado por um advogado público. O juiz entendeu que, pelo padrão de vida elevado que mantinha, ele podia muito bem arcar com os custos de um advogado.

Durante as discussões, ficou constatado que André Parreira, sócio de Mora no negócio, acessou o site da Webspectator de seu próprio telefone celular e deletou todos os softwares armazenados em nuvens pela Amazon. No final, os dois foram condenados a pagar cerca de U$ 2 milhões pelas custas processuais e a pagar uma indenização de US$ 30 milhões à empresa que lesaram.

Processados perante a Justiça dos Estados Unidos e também na Justiça Criminal do Brasil por crime de concorrência desleal, Mora e Parreira contra-atacaram e apresentaram em Portugal a denúncia que inspirou a reportagem da Sábado. Em tempo: a revista omite que mantém ligações comerciais com os dois e que se utiliza pelo menos partes do software que, por direito, pertence à Webspectator.

De facto, todo o grupo Cofina, a quem pertence a revista Sábado, tem os seus sites monetizados com a ajuda da empresa portuguesa Insurads (vejq documento 1), sociedade que tem como diretores, nada mais, nada menos, André Parreira, Dulce Parreira e, pasmem, Rafael Mora (documento 2)! Na prática, é como se o Cofina estivessem se utilizando de um software pirata — prática condenável para uma empresa que se coloca tão acima da lei. É triste quando um órgão de comunicação, como fez a Sábado, se apoia no suposto prestígio que tem junto aos leitores para acobertar uma prática que a justiça dos Estados Unidos taxou de espoliação e se presta a, ao invés de esclarecer a verdade, construir uma versão fantasiosa dos fatos que motivaram a reportagem.

De uma família tradicional no mundo dos negócios de Portugal, Nuno Vasconcellos, como é de conhecimento público, teve uma ascensão empresarial meteórica á frente do grupo Ongoing. Suas empresas, no entanto, ruíram na esteira das bancarrotas do Banco Espírito Santo e da Portugal Telecom, na década passada.

Desde que isso aconteceu, Vasconcellos vem tentando — e não nega — reconstruir a vida profissional no Brasil, como administrador de alguns negócios que, no passado, pertenceram a seu grupo empresarial, e de outros que surgiram depois da falência da Ongoing. Não é um exemplo único de profissional que tenta se recuperar depois de um fracasso. A Sábado, porém, vê essa tentativa como um crime.

Rui Costa Moreno

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